quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A Queda de um Anjo - Camilo Castelo Branco

Breve resumo do enredo da obra Calisto Elói, morgado da Agra de Freimas, vive em Caçarelhos com sua mulher, D. Teodora de Figueiroa, e com os seus livros clássicos, cuja leitura é o seu entretenimento preferido. Tendo sido eleito deputado pelo círculo de Miranda, vem para Lisboa, disposto a lutar contra a corrupção dos costumes. Faz furor no Parlamento com os seus discursos conservadores, através dos quais mostra um perfeito domínio da oratória parlamentar. Defende principalmente o bom uso da língua portuguesa e combate o luxo e os teatros. Sempre apoiado na sua cultura livresca, os seus discursos fazem sensação no Parlamento, causando as mais desencontradas reacções. Defendendo sempre a moral dos bons costumes antigos e atacando os modernos, a sua figura vai-se avolumando, adquirindo uma dimensão grandiosa. Depois de atingir o climax, inicia-se o processo da queda. Esta consiste essencialmente na transformação total do herói, que adquire os costumes modernos que tanto condenava. Inicia uma relação ilícita com D. Ifigénia Ponce de Leão, com quem acaba por viver maritalmente e de quem tem dois filhos. Entretanto D. Teodora, abandonada pelo marido, vai também viver maritalmente com seu primo, Lopo de Gamboa, de quem tem um filho.

Navio Negreiro - Castro Alves

I 'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Brinca o luar — dourada borboleta; E as vagas após ele correm... cansam Como turba de infantes inquieta. 'Stamos em pleno mar... Do firmamento Os astros saltam como espumas de ouro... O mar em troca acende as ardentias, — Constelações do líquido tesouro... 'Stamos em pleno mar... Dois infinitos Ali se estreitam num abraço insano, Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... 'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas Ao quente arfar das virações marinhas, Veleiro brigue corre à flor dos mares, Como roçam na vaga as andorinhas... Donde vem? onde vai? Das naus errantes Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? Neste saara os corcéis o pó levantam, Galopam, voam, mas não deixam traço. Bem feliz quem ali pode nest'hora Sentir deste painel a majestade! Embaixo — o mar em cima — o firmamento... E no mar e no céu — a imensidade! Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! Que música suave ao longe soa! Meu Deus! como é sublime um canto ardente Pelas vagas sem fim boiando à toa! Homens do mar! ó rudes marinheiros, Tostados pelo sol dos quatro mundos! Crianças que a procela acalentara No berço destes pélagos profundos! Esperai! esperai! deixai que eu beba Esta selvagem, livre poesia Orquestra — é o mar, que ruge pela proa, E o vento, que nas cordas assobia... .......................................................... Por que foges assim, barco ligeiro? Por que foges do pávido poeta? Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira Que semelha no mar — doudo cometa! Albatroz! Albatroz! águia do oceano, Tu que dormes das nuvens entre as gazas, Sacode as penas, Leviathan do espaço, Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas. II Que importa do nauta o berço, Donde é filho, qual seu lar? Ama a cadência do verso Que lhe ensina o velho mar! Cantai! que a morte é divina! Resvala o brigue à bolina Como golfinho veloz. Presa ao mastro da mezena Saudosa bandeira acena As vagas que deixa após. Do Espanhol as cantilenas Requebradas de langor, Lembram as moças morenas, As andaluzas em flor! Da Itália o filho indolente Canta Veneza dormente, — Terra de amor e traição, Ou do golfo no regaço Relembra os versos de Tasso, Junto às lavas do vulcão! O Inglês — marinheiro frio, Que ao nascer no mar se achou, (Porque a Inglaterra é um navio, Que Deus na Mancha ancorou), Rijo entoa pátrias glórias, Lembrando, orgulhoso, histórias De Nelson e de Aboukir.. . O Francês — predestinado — Canta os louros do passado E os loureiros do porvir! Os marinheiros Helenos, Que a vaga jônia criou, Belos piratas morenos Do mar que Ulisses cortou, Homens que Fídias talhara, Vão cantando em noite clara Versos que Homero gemeu ... Nautas de todas as plagas, Vós sabeis achar nas vagas As melodias do céu! ... III Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano Como o teu mergulhar no brigue voador! Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras! É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! IV Era um sonho dantesco... o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho. Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar... Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras moças, mas nuas e espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs! E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais ... Se o velho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais... Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri! No entanto o capitão manda a manobra, E após fitando o céu que se desdobra, Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!..." E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... Qual um sonho dantesco as sombras voam!... Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás!... V Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! Quem são estes desgraçados Que não encontram em vós Mais que o rir calmo da turba Que excita a fúria do algoz? Quem são? Se a estrela se cala, Se a vaga à pressa resvala Como um cúmplice fugaz, Perante a noite confusa... Dize-o tu, severa Musa, Musa libérrima, audaz!... São os filhos do deserto, Onde a terra esposa a luz. Onde vive em campo aberto A tribo dos homens nus... São os guerreiros ousados Que com os tigres mosqueados Combatem na solidão. Ontem simples, fortes, bravos. Hoje míseros escravos, Sem luz, sem ar, sem razão. . . São mulheres desgraçadas, Como Agar o foi também. Que sedentas, alquebradas, De longe... bem longe vêm... Trazendo com tíbios passos, Filhos e algemas nos braços, N'alma — lágrimas e fel... Como Agar sofrendo tanto, Que nem o leite de pranto Têm que dar para Ismael. Lá nas areias infindas, Das palmeiras no país, Nasceram crianças lindas, Viveram moças gentis... Passa um dia a caravana, Quando a virgem na cabana Cisma da noite nos véus ... ... Adeus, ó choça do monte, ... Adeus, palmeiras da fonte!... ... Adeus, amores... adeus!... Depois, o areal extenso... Depois, o oceano de pó. Depois no horizonte imenso Desertos... desertos só... E a fome, o cansaço, a sede... Ai! quanto infeliz que cede, E cai p'ra não mais s'erguer!... Vaga um lugar na cadeia, Mas o chacal sobre a areia Acha um corpo que roer. Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d'amplidão! Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar... Ontem plena liberdade, A vontade por poder... Hoje... cúm'lo de maldade, Nem são livres p'ra morrer. . Prende-os a mesma corrente — Férrea, lúgubre serpente — Nas roscas da escravidão. E assim zombando da morte, Dança a lúgubre coorte Ao som do açoute... Irrisão!... Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, Se eu deliro... ou se é verdade Tanto horror perante os céus?!... Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas Do teu manto este borrão? Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! ... VI Existe um povo que a bandeira empresta P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... E deixa-a transformar-se nessa festa Em manto impuro de bacante fria!... Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia? Silêncio. Musa... chora, e chora tanto Que o pavilhão se lave no teu pranto! ... Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra E as promessas divinas da esperança... Tu que, da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!... Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu nas vagas, Como um íris no pélago profundo! Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada! arranca esse pendão dos ares! Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Resumo da Obra Isaú e Jacó de machado de Assis

Publicado em 1904, Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis. O título é extraído da Bíblia, remetendo-nos ao Gênesis: à história de Rebeca, que privilegia o filho Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, fazendo-os inimigos irreconciliáveis. A inimizade dos gêmeos Pedro e Paulo, do romance de Machado, não tem causa explícita, daí a denominação de romance "Ab Ovo" (desde o ovo). É o romance da ambigüidade, narrado em 3ª pessoa, pelo Conselheiro Aires. Pedro e Paulo seriam "os dois lados da verdade". Filhos gêmeos de Natividade e Agostinho Santos, à medida que vão crescendo, os irmãos começam a definir seus temperamentos diversos: são rivais em tudo. Paulo é impulsivo, arrebatado, Pedro é dissimulado e conservador - o que vem a ser motivo de brigas entre os dois. Já adultos, a causa principal de suas divergências passa a ser de ordem política - Paulo é republicano e Pedro, monarquista. Estamos em plena época da Proclamação da República, quando decorre a ação do romance. Para apaziguar a discórdia fraterna, de nada valem os conselhos de Aires, amigo de Natividade, nem as previsões de discórdia e grandeza feitas por uma adivinha (A Cabocla do Castelo), quando os gêmeos tinham ainda um ano. Até em seus amores, os gêmeos são competitivos. Flora, a moça de quem ambos gostam, se entretém com um e outro, sem se decidir por nenhum dos dois: a moça é retraída, modesta, e seu temperamento avesso a festas e alegrias, isso levou o Conselheiro Aires a dizer que ela era "inexplicável". O conselheiro Aires é mais um grande personagem da galeria machadiana, que reaparecerá como memorialista no próximo e último romance do autor: velho diplomata aposentado, de hábitos discretos e gosto requintado, amante de citações eruditas, muitas vezes interpreta o pensamento do próprio romancista. As divergências entre os irmãos continuam, muito embora, com a morte de Flora, tenham jurado junto a seu túmulo uma reconciliação perpétua. A morte da moça, porém, une temporariamente os gêmeos, mais tarde, também a morte de Natividade cria uma trégua entre ambos, mas logo se lançam às disputas. Continuam a se desentender, agora em plena tribuna, depois que ambos se elegeram deputados por dois partidos diferentes, absolutamente irreconciliáveis: cumpre-se, portanto, a previsão da adivinha: ambos seriam grandes, mas inimigos. Comentário e estudo: 100 ANOS DE ESAÚ E JACÓ O penúltimo romance de Machado de Assis reflete com maestria sua ambígua posição política por Fabio Guimenes (guimenes@yahoo.com.br) Joaquim José Maria Machado de Assis (1839-1908) é unanimemente celebrado como um dos maiores escritores brasileiros. Nenhum outro reuniu um interesse tão generalizado em torno de sua vida e obra. Este prestígio, que outros escritores mais populares não conseguiram alcançar, o situa à parte, representando por si só um momento incomparável na sucessão das escolas literárias. Destoante pelo pensamento e pelo estilo da tradição literária, Machado de Assis marca seu próprio estilo, fazendo crer ao seu leitor que se colocava face aos acontecimentos históricos que presenciou como simples espectador. “As décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX (...)” diz Nicolau Svcenko, em seu livro Literatura como Missão - Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República , “(...) assinalavam mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira. Mudanças que foram registradas pela literatura, mas, sobretudo mudanças que se transformaram em literatura.” Nos primeiros anos da República, a intranqüilidade social e política abatia a todos os que tinham esperança no novo regime. Numa época em que os Realistas se desdobravam em detalhes grosseiros, Machado preferia sugerir a declarar. Olhando a natureza como um míope, ele, em compensação, devassa e penetra a alma dos homens, para aí sim, exibi-la em opulência de detalhes. O estudo da obra machadiana ainda nos coloca uma série de obstáculos. Como diz José Barreto Filho em seu livro Introdução à obra de Machado de Assis , “Machado nos quis dizer um segredo, mas o fêz com tanta reserva que não pôde formular talvez, nem para si mesmo”. Definir em que consiste este universo tem sido tema de artigos, livros e pesquisas, cada qual trazendo sua interpretação. O objetivo deste ensaio é mostrar como Machado de Assis tornou-se um excelente retratista de seu tempo. Através de sua literatura, pode-se conhecer o que de mais característico havia no Rio de Janeiro. Machado não escreveu a História dos Subúrbios, prometida em Dom Casmurro através do personagem-narrador, mas, em compensação, compôs, através de sua visão, a história política e social de toda a cidade, quando esta exercia ainda segundo Sevcenko “papel preponderante, senão hegemônico, como capital cultural, além de ser o centro das decisões políticas e administrativas”. Em sua dissertação de mestrado, defendida em 1985 na UFF intitulada A República do Pica-pau Amarelo , o Professor Doutor André Luiz Vieira de Campos diz que “mais do que simples testemunho da sociedade, a literatura pode revelar seus conflitos dissimulados e desejos não realizados”. Não há produção humana desvinculada da realidade de seu tempo; por isso, a literatura sempre foi um importante instrumento na formação da mentalidade das elites do país. Esaú e Jacó , escrito em 1904, foi o penúltimo romance de Machado de Assis, trazendo uma particularidade: reflete a posição política de um homem tido como alheio aos movimentos de tal natureza. O escritor retoma, no título, a referência bíblica — típica de sua ficção — remetendo a história de Pedro e Paulo ao episódio do Antigo Testamento ( Gênesis, capítulos 27 a 33) . Os gêmeos nos trazem reflexões políticas que, certamente, ocupavam o imaginário da época, além de Flora, apaixonada pelos irmãos, que caracteriza a indecisão, marca registrada da obra machadiana, que nada afirma sem, logo a seguir, meter a dúvida de permeio. Machado de Assis utiliza as duas personagens — Pedro e Paulo — para, em cada uma, incorporar seu espírito hesitante e em constante luta íntima na grande questão que nos traz esta obra: Monarquia X República. A grande preocupação dos estudiosos da obra machadiana é situar suas tendências políticas ao lado da República contra o Império. Mas como diz H. Pereira da Silva em seu livro Sobre os Romances de Machado de Assis , “determinar-lhe o comportamento político só mesmo pelo método dedutivo. E deduzi-lo partidário da República implica em sofismar mais do que em deduzir”. “Há nos mais graves acontecimentos, muitos pormenores que se perdem, outros que a imaginação inventa para suprimir os perdidos, e nem por isso a história morre”, prega um trecho de Esaú e Jacó . O livro possui uma particularidade: refletir a posição política de um homem tido como alheio a movimentos de tal natureza. Acusado de indiferente, frio e inteiramente desligado das paixões políticas, Machado de Assis, nesta obra, discute e analisa uma das mais importantes épocas da política brasileira. Vê-se que a obra se ocupa do período de 1855 a 1890, época cuja importância é fundamental na evolução da sociedade brasileira. Neste período de nossa história, temos a economia do café, extinção do trabalho escravo e o emprego da mão-de-obra livre. Há grandes transformações urbanas e a população cresce a cada dia. O autor procura registrar a transição Império/República, o que dá ao texto o nível histórico. Uma curiosidade deste livro é que Machado de Assis não se coloca como autor da obra. Logo em seu início, há uma advertência onde diz que os manuscritos que deram origem ao livro foram encontrados após a morte do Conselheiro Aires. Machado, então, monta a sua narrativa a partir dos manuscritos do Conselheiro. A referência bíblica é típica da ficção machadiana e aparece em todos os livros anteriores a este. Através dela, o autor infunde um caráter de parábola à narrativa, dimensionando-a em curto grau de universalidade. A obra faz menção a um episódio, como já foi dito, do Antigo Testamento: como Rebeca era estéril, Isaac implorou a Jeová que lhe concedesse filhos. Concebendo gêmeos e sentindo-os lutar em seu útero, ela interroga a Deus que responde: “duas nações há no teu ventre, dois povos nascidos de ti, que se dividirão; um povo será mais forte do que o outro e o mais velho servirá ao mais moço”. Esta referência fixa, desde já, o nível mítico do discurso. A ação que transcorrerá opondo Pedro e Paulo reporta-se a uma realidade arquetípica, inerente à própria natureza humana e diz respeito às suas origens. Também é importante notar como Machado vai localizando objetivamente a ação num cenário específico da vida urbana. O autor, como de costume, faz menção minuciosa de lugares, hábitos, profissões e convenções. Revela-se, assim, uma fotografia bastante nítida do código social da burguesia brasileira na segunda metade do século XIX, sendo possível, até mesmo, reconstituí-la através do texto machadiano. Retomando a análise de Pedro e Paulo, é através destas duas personagens que nos chegam as pulsações políticas do autor. Para resumir o nível de confronto dos irmãos, digo apenas uma coisa: se perguntados sobre a data de seus aniversários — 7 de abril de 1870 — Paulo diria: “Nasci no aniversário do dia em que Pedr oI caiu do trono”. E Pedro: “Nasci no aniversário do dia em que sua Majestade subiu ao trono”. Flora, personagem dúbia, seria o amor de ambos. Ela não se decide e eles que sempre divergiam concordam com o fato de que nenhuma outra mulher teria as qualidades de Flora e disputam-na. Pedro, Paulo e Flora habitam esta região do mundo machadiano, que são os mais de cem capítulos desta obra, com o objetivo de contrastarem idéias do autor. Na realidade, os dois não são mais que um, se temos que distinguí-los simbolicamente como meio de expressão de um conjunto de idéias e não, meramente, como personagens. Machado serve-se, digamos assim, dos irmãos para em cada um incorporar o seu espírito hesitante e em constante luta íntima. A segunda metade do século XIX, como disse, rica historicamente, não o seduziria a ponto de fazê-lo tomar parte ativa nos movimentos que culminaram com a abolição da escravatura e a proclamação da República, entre outros. Havia em Machado de Assis — consumido lentamente pela epilepsia — uma preocupação maior que todas: a de firmar sua personalidade antes que o “grande mal” o vencesse. Firmou, mas foi vencido por outra doença: o câncer. Esaú e Jacó , por certo, foi interrompido mais de uma vez pelas crises e ataques que o prostravam ao leito por dias seguidos. A proclamação da República merece, na narrativa, mais do que a habitual atenção de Machado de Assis dispensada a um acontecimento político. Trata-se do episódio da tabuleta; ele, melhor do que ninguém, define a exata posição do autor e do povo diante do fato. Custódio, dono de uma confeitaria no Catete, vê-se em sérios problemas com a queda da monarquia e “se pudesse liquidava a confeitaria, afinal que tinha ele com política? Era um simples fabricante e vendedor de doces, estimado, afreguesado, respeitado e principalmente respeitador da ordem pública…”. Este episódio inicia-se no capítulo 49 e só se completa no capítulo 63. Talvez em nenhuma outra passagem da obra de Machado de Assis a questão das relações entre credos políticos e o individualismo burguês tenha recebido tratamento tão irônico. O temor e a avareza qualificam o conceito de propriedade, expressando-se na busca de um título “simultaneamente definitivo, popular e imparcial” que o defenda em qualquer circunstância. Este diálogo se dá entre Custódio e o Conselheiro Aires. Tudo começa quando Custódio, dias antes da proclamação da República, manda pintar uma tabuleta que dizia “Confeitaria do Império”. Passo, então, após este introdutório que, certamente, despertou a curiosidade dos que não o conhecem, a transcrevê-lo. “— Mas o que é que há? Perguntou Aires. — A república está proclamada. — Já há governo? — Penso que já; mas diga-me V.Ex.ª: ouviu alguém acusar-me jamais de atacar o governo? Ninguém. Entretanto, uma fatalidade! Venha em meu socorro, Excelentíssimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. —‘Confeitaria do Império', à tinta é viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não estivesse acabada, mudava de título, por mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V.Ex.ª crê que, se ficar ‘Império', venham quebrar-me as vidraças? — Isso não sei. — Pessoalmente, não há motivo; é o nome da casa, nome de trinta anos, ninguém a conhece de outro modo… — Mas pode por ‘Confeitaria da República'… — Lembrou-me isso a caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje e perco outra vez o dinheiro. — Tem razão… sente-se. — Estou bem. — Sente-se e fume um charuto. Custódio recusou o charuto, não fumava. Aceitou a cadeira. Estava no gabinete de trabalho, em que algumas curiosidades lhe chamariam a atenção, se não fosse o atordoamento do espírito. Continuou a implorar o socorro do vizinho. S. Exª. com a grande inteligência que Deus lhe dera, podia salvá-lo. Aires propôs-lhe um meio-termo, um título que iria com ambas as hipóteses — ‘Confeitaria do Governo'. — Tanto serve para um regímen como para outro. — Não digo que não, e, a não ser a despesa perdida… Há, porém, uma razão contra. V.Exª. sabe que nenhum governo deixa de ter oposição. As oposições, quando descerem à rua, podem implicar comigo, imaginar que as desafio, e quebrarem a tabuleta; entretanto o que eu procuro é o respeito de todos. Aires compreendeu bem que o terror ia com a avareza. Certo, o vizinho não queria barulhos à porta, nem malquerenças gratuitas, nem ódios de quem quer que fosse; mas, não o afligia menos a despesa que teria de fazer de quando em quando, se não achasse um título definitivo, popular e imparcial. Perdendo o que tinha, já perdia a celebridade, além de perder a pintura e pagar mais dinheiro. Ninguém lhe compraria uma tabuleta condenada. Já era muito ter o nome e o título no Almanaque de Laemmert, onde podia lê-lo algum abelhudo e ir com ou outros, puni-lo do que estava impresso desde o princípio do ano… — Isso não, interrompeu Aires; o senhor não há de recolher a edição de um almanaque. E depois de alguns instantes: — Olhe, dou-lhe uma idéia, que pode ser aproveitada, e, se não a achar boa, tenho outra à mão, e será a última. Mas eu creio que qualquer delas serve. Deixe a tabuleta pintada como está, e à direita, na ponta, por baixo do título, mande escrever estas palavras que explicam o título: ‘Fundada em 1860'. Não foi em 1860 que abriu a casa? — Foi, respondeu Custódio. — Pois… Custódio refletia. Não se lhe podia ler sim nem não; atônito, a boca entreaberta, não olhava para o diplomata, nem para o chão, nem para as paredes ou móveis, mas para o ar. Como Aires insistisse, ele acordou e confessou que a idéia era boa. Realmente, mantinha o título e tirava-lhe o sedicioso, que crescia com o fresco da pintura. Entretanto, a outra idéia podia ser igual ou melhor, e quisera comparar as duas. — A outra idéia não tem a vantagem de pôr a data à fundação da casa, tem só a de definir título, que fica sendo o mesmo, de uma maneira alheia ao regímen. Deixe-lhe estar a palavra império e acrescente-lhe embaixo, ao centro estas duas, que não precisam ser graúdas: das leis. Olhe, assim, concluiu Aires, sentando-se à secretária, e escrevendo em uma tira de papel que dizia. Custódio leu, releu e achou que idéia era útil; sim, não lhe parecia má. Só lhe viu um defeito: sendo as letras debaixo menores, podiam não ser lidas tão depressa e claramente como as de cima, e estas é que se meteriam pelos olhos ao que passasse. Daí a que algum político ou sequer inimigo pessoal não entende logo, e… A primeira idéia, bem considerada, tinha o mesmo mal, e ainda este outro: pareceria que o confeiteiro, marcando a data da fundação fazia timbre em ser antigo. Quem sabe que não era pior que nada? — Tudo é pior que nada. — Procuremos. Aires achou outro título, o nome da rua, ‘Confeitaria do Catete', sem advertir que havendo outra confeitaria na mesma rua, era atribuir exclusivamente a Custódio a designação local. Quando o vizinho lhe fez tal ponderação, Aires achou-a justa, e gostou de ver a delicadeza de sentimentos do homem; mas logo depois que o que fez falar o Custódio foi a idéia de que este título ficava comum às duas casas. Muita gente não atinaria com o título e compraria na primeira que lhe ficasse à mão, de maneira que só ele faria as despesas da pintura, e ainda por cima perdia a freguesia. Ao perceber isso, Aires não admirou menos a sagacidade de um homem que, em meio a tantas tribulações, contava os maus frutos de um equívoco. Disse-lhe então que o melhor seria pagar a despesa feita e não por nada, a não ser que preferisse seu próprio nome: ‘Confeitaria do Custódio'. Muita gente certamente lhe não conhecia a casa por outra designação. Um nome, o próprio nome do dono, não tinha significação política ou figuração histórica, ódio nem amor, nada que chamasse a atenção dos dois regimens, e conseguintemente que pusesse em perigo os seus pastéis de Santa Clara, menos ainda a vida do proprietário e dos empregados. Por que é que não adotava esse alvitre? Gastava alguma coisa com a troca de uma palavra por outra, ‘Custódio' em vez de ‘Império', mas as revoluções trazem sempre despesas. — Sim, vou pensar, excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dois dias, a ver em que param as modas, disse Custódio agradecendo. Curvou-se, recuou e saiu. Aires foi à janela para vê-lo atravessar a rua. Imaginou que ele levaria da casa do ministro aposentado em lustre particular que faria esquecer por instantes a crise da tabuleta. Nem tudo são despesas na vida, e a glória das relações podia amaciar as agruras deste mundo. Não acertou desta vez. Custódio atravessou a rua, sem parar nem olhar para trás, e enfiou pela confeitaria dentro com todo sem desespero”. Não entram aí, por transferência, certos elementos da biografia do autor? Como o “fabricante e vendedor de doces”, “afinal, o que tinha ele a ver com política?” “Respeitado” e “respeitador da ordem pública”; quem o foi mais Machado de Assis? Situar as tendências de Machado de Assis relativas à política, colocando-o ao lado da República e contra o Império, tem sido, como dissemos, a maior preocupação dos machadianos. A verdade, porém, é que o romancista nutria por D.Pedro II e a Família Imperial grande estima. Ainda jovem, dedicou nas colunas de A Marmota , um soneto ao Imperador. “Nesse trono, Senhor, que foi erguido por um povo já livre, e sustentado por ti, que alimentando as leis, o estado hás na história teu nome engrandecido. Neste trono, Senhor, onde esculpido tem a destra do eterno um nome amado vês nascer este dia abrilhantado sorrindo a ti, monarca esclarecido! Eu te saúdo neste dia imenso! Da clemência, justiça sã, verdade queimando as piras perfumoso incenso! Elevando aos umbraes da imensidade terá fama, respeito e amor intenso! Um nome transmitido à eternidade!” Rio de Janeiro, 02 de dezembro de 1855 Machado de Assis Depois disso, por diversas vezes se reporta com incontida admiração ao Monarca retratado pelos adeptos do novo regime. A crença de que os monarquistas eram retrógrados desapareceu com os reacionários da república. Sem fazer afirmações, ou melhor, fazendo-as para, ao mesmo tempo, invalidá-las com um ponto de interrogação, Machado de Assis não se deixa apanhar facilmente. Voltemos a Flora. Ela oscila como um pêndulo entre o amor de Pedro e Paulo e, até a morte, hesita. Chega a ter alucinações. Ouve vozes. E, fundindo-as em apenas uma, de tão iguais que eram, transforma os gêmeos em uma única pessoa. O drama de Flora consiste em não se decidir, tal era a atração pelos gêmeos. Machado de Assis resume os anseios da moça assim: “Era um espetáculo misterioso, vago, obscuro em que as figuras visíveis se faziam impalpáveis, o dobrado ficava único, o único dobrado, uma fusão, uma confusão, uma difusão”. A complexidade dos sentimentos que fazem de Flora um símbolo da indecisão de Machado de Assis põe a descoberto uma constante no espírito titubeante do seu criador. Tomar uma decisão constituiu, sem a menor dúvida, algo penoso, quase uma transgressão consigo mesma, para quem, de preferência, acreditava nas coisas boas e más, sem revoltas violentas ou medidas drásticas. A rebeldia machadiana, como a de Voltaire, se manifesta sutilmente nos ditos satíricos, na ironizante e particular maneira de mostrar, nos lábios, um sorriso de desdém e, nos olhos, ocultar as lágrimas de compaixão pelas aspirações humanas. Interrogações seguidas de resposta cética e imediata como esta: “Vives? Não quero outro flagelo”. Expõe feridas e cicatrizes íntimas. Em Machado de Assis, tão introvertido, o humor seria uma válvula de escape em textos carregados de impressões refinadas pela sua sensibilidade. Esaú e Jacó , pelos motivos expostos, poderia intitular-se Indecisão . As personagens, mesmo as secundárias, não possuem caracteres positivos estáveis; atravessam a obra como criaturas que dão a impressão de incerteza ao primeiro olhar. A figura de Flora não se fixa na memória do leitor sem deixar um rastro de dúvidas quanto à sua preferência por um dos gêmeos. Termina sem chegar a separar Pedro e Paulo, fundindo-os num só, tal como acontecia em suas alucinações. Na forma, Esaú e Jacó , como expressão literária, é uma obra-prima pouco lembrada pelos críticos. Machado de Assis atinge uma superioridade estilística só mesmo inferior à que conquista em Memorial de Aires . As idéias de Machado são como as moedas: possuem duas faces — cara e coroa —; o seu valor, porém, torna-as únicas (Apostila 12 de Realismo - Literatura Brasileira)

Leituras para a Vestibular 2013

Prostituição infantil- Olavo Bilac Não sei que jornal, há algum tempo, noticiou que a polícia ia tomar sob a sua proteção as crianças que aí vivem, às dezenas, exploradas por meia dúzia de bandidos. Quando li a notícia, rejubilei. Porque, há longo tempo, desde que comecei a escrever, venho repisando este assun­to, pedindo piedade para essas crianças e cadeia para esses patifes. Mas os dias correram. As providências anunciadas não vieram. Parece que a piedade policial não se estende às crianças, e que a cadeia não foi feita para dar agasalho aos que prostituem corpos de sete a oito anos… E a cidade, à noite, continua a encher-se de bandos de meninas, que vagam de teatro em teatro e de hotel em hotel, vendendo flores e aprendendo a vender beijos. Anteontem, por horas mortas, [***] que me encheu de mágoa e de nojo, de indignação e de angústia. Saía de um teatro. [***] rua central da cidade, deserta a essa hora avançada da noite, vi sentada uma menina, a uma soleira de porta. Dormia. Ao lado, a sua cesta de flores murchas estava atirada sobre a calçada. Despertei-a. A pobrezinha levantou-se, com um grito. Teria oito anos, quando muito. Louros e despenteados, emolduravam os seus cabelos um rosto desfeito, amarrotado de sono e de choro. E dentro do miserável vestidinho de chita, todo o seu corpo tremia, como numa convulsão, nervosamente. Quando viu que não lhe queria fazer mal, o seu ar de medo mudou-se logo num ar de súplica. Pediu-me dez tostões, chorando. E a sua meia-língua infantil, espanholada, disse-me cousas que ainda agora me doem dentro do coração. Perdera toda a féria. Só conseguira obter, ao cabo de toda uma tarde de caminhadas e de pena, esses dez tostões — perdidos ou furtados. E pelos seus olhos molhados pas­sava o terror das bordoadas que a esperavam em casa… "Mas é teu pai quem te esbordoa?" "E um homem que mora lá em casa…" Dei-lhe os dez tostões, sem poder falar. Ela, já alegre, com um sorriso divino que lhe iluminava a face úmida, pediu-me mais duzentos reis — para si, esses, para doces. Guardou a nota na cesta, e meteu a mesada na meia, depressa, para a esconder… Fiquei parado, longo tempo, a olhá-la. O seu vulto fugia já, pequenino, quase invisível na escuridão. Ainda de longe o vi, fracamente alumiado por um lampião, sumir-se, dobrando uma esquina. Segui o meu caminho, com a morte na alma. Ora — nestes tempos singulares em que a gente já se habituou a ouvir sem espanto cousas capazes de horrorizar a alma de Deiber —, é possível que alguém, encolhendo os ombros diante disto, me pergunte, o que é que eu tenho com a vida das crianças que vendem flores e são amassadas a sopapos quando não levam para casa uma certa e deter­minada quantia. Tenho tudo, amigos meus! não penseis que me iluda sobre a eficácia das providências que possa a polícia tomar, a fim de salvar das pancadas o corpo e da devassidão a alma de qualquer dessas meninas. Bem sei que, enquanto o mundo for mundo e enquanto houver meninas — proteja-as ou não as proteja a polícia —, haverá pais que as esbordoem, mães que as vendam, cadelas que as industriem ; cães que as deflorem! Bem o sei: mas sei também que possuo nervos que vibram, coração que se impressiona e olhos que vêem. E se a polícia não pode impedir a continuação dessa infâmia — pode pelo menos impedir que ela se ostente, escandalosa, florescendo e frutificando à sombra da sua indulgência e da sua tolerância. A polícia não pode proibir também que as meretrizes de profissão se entreguem ao seu comércio. Mas não deixa que elas apareçam nuas à janela, e muito menos consente que venham fazer no meio da rua, à luz meridiana, o que fazem no interior das casinhas de porta e janela. Com um milhão de raios! quem tem a desgraça de possuir dentro do organismo um cancro incurável — não podendo extirpá-lo, trata ao menos de o esconder, por higiene, por decên­cia, por pudor! Demais, que custa abrir um inquérito para conseguir saber que grau de parentesco existe entre as crianças vende­doras de flores e os que as exploram? Eu, por mim, posso afirmar a quem de direito que, em cada grupo de dez crian­ças dessas, interrogadas por mim, duas apenas me têm dito que conhecem pai ou mãe… Enfim, todos nós temos mais que fazer. E talvez a sorte melhor que se possa desejar hoje cm dia a uma criança pobre — seja uma boa morte, uma dessas generosas mortes providenciais, que valem mais que todas as esmolas, todas as bênçãos, todos os augúrios felizes e… toda a comiseração dos cronistas. Olavo Bilac Gazeta de Notícias 14/8/1894