Homilia de Dom Erwin Kräutler na Missa da 49ª da AG da CNBB
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Irmãs e irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo,
Caríssimos irmãos Bispos do Brasil e participantes da Assembleia Geral da CNBB,
O Evangelho de São João não fala em "milagres". Fala em "sinais" e são sete que apresenta 1. A finalidade principal dos sinais é despertar e corroborar a fé em Jesus, o Filho de Deus. Como os sinais, também a Fé é "obra de Deus" (Jo 6,29)! Ela não é imposta, mas requer a decisão pessoal de comprometer-se com Jesus, o Cristo. Há diversas reações ao convite, à "obra de Deus". Em Caná da Galiléia Jesus "manifestou sua glória e os seus discípulos creram nele" (Jo 2,11). Mais tarde, quando multiplica os pães e caminha sobre o mar a resposta já não é tão cristalina e direta como em Caná ou na cura do filho do funcionário real que "creu, ele e todos da sua casa" (Jo 4,53).
Jesus sacia milhares de pessoas (Jo 6,1-15). Na sinagoga de Cafarnaum, explica mais tarde este sinal. Insiste que os discípulos se esforcem "não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna" (v. 27). Não se trata de "espiritualizar" as necessidades elementares da pessoa humana. Como ninguém sobrevive por muito tempo sem comer, assim os discípulos precisam alimentar-se do "Pão da Vida" (v. 48). A afirmação "quem come minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna" (v. 54) gera espanto na sinagoga. São palavras intoleráveis para os ouvidos dos judeus. E a reação não tarda. "Muitos dos seus discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele" (v. 66). Jesus percebe a crise dos Doze e - em tom provocador - exige uma clara tomada de posição, pois crer significa "aceitar" não só a Palavra, mas também o Corpo entregue e o Sangue derramado do Senhor: "Vós também quereis ir embora?" (v. 67). E Simão Pedro faz sua profissão solene de fé: "Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras e vida eterna e nós cremos e reconhecemos que és o Santo de Deus" (vv. 68-69).
Jesus se refugia para a montanha, porque a multidão, uma vez saciada, quer "proclamá-lo rei" (V. 15). Já é noite. Os discípulos estão no barco e remam penosamente contra a corrente. Aí, Jesus vem ao seu encontro, andando por sobre a água. "Ficaram com medo!" diz o Evangelho. Sim, com medo! O medo, quando invade o coração, gera angústia, abala o nosso ser até os alicerces, faz-nos gritar por socorro. Exatamente nesta situação-limite os discípulos escutam a voz de Jesus que os tranquiliza: "Sou eu. Não tenhais medo!" (v. 20). Crer na presença de Jesus expulsa o medo. Fé e medo são incompatíveis. A fé dá coragem, o medo paralisa. Deus é "Imma nu 'El" - "Deus conosco" (Mt 21,23; Is 7,14). Crer é viver na proximidade de Deus, desfrutar da intimidade com Deus, ter uma experiência viva de Deus. Crer é "andar com Deus" (Gn 5,22.24; Gn 6,9). A Josué, sucessor de Moisés, Deus promete: "Não tenhas medo, não te apavores, pois o Senhor, teu Deus, estará contigo por onde quer que andes" (Js 1,9). Noite escura, águas revoltas, ventos impetuosos, tempestade de raios, ondas violentas, pânico a bordo, o barco ameaçando naufragar! Em meio a todo esse pandemônio escutamos a voz do Senhor "Sou eu. Não tenhais medo!" Cessa a fúria do vento, o mar bravio se acalma. O Senhor dissipa a escuridão da noite. A aurora desponta. "Sou eu. Não tenhais medo!" É Páscoa: a Vida venceu a morte! A graça é mais forte do que o pecado. O Amor e a Paz triunfam sobre o ódio e a guerra, exterminam a violência e as injustiças.
Mas, será que é mesmo Páscoa? Rompeu realmente a aurora do dia da Vitória, da Libertação da casa da escravidão? Será que a Páscoa que celebramos não é apenas uma utopia que acalentamos, um sonho que sonhamos? As cruzes não continuam erguidas pelo mundo afora? Não estão presentes em cada esquina, ao longo das estradas, à beira de cada rio, lago ou igarapé de nosso Brasil? Não estão pregados nelas homens e mulheres, considerados "supérfluos", "descartáveis" (cf. DAp 65) porque não se enquadram num sistema que faz do lucro a sua única mola mestra? Não continuam pregados na cruz os indígenas: violentados e assassinados, expulsos ou fraudados de suas terras ancestrais, reduzidos a párias da sociedade, enxotados como animais, tratados como vagabundos de beira de estrada, ou então confinados em verdadeiros currais humanos, sem mínimas condições de sobrevivência física e muito menos cultural? Não estão pregadas nestas cruzes as vítimas do tráfico humano que se alastra pela Amazônia, as meninas e os meninos aliciados e iludidos por redes nacionais e internacionais de prostituição que operam em nosso querido Estado do Pará e outros Estados do norte e nordeste? Não estão condenadas a morrer na cruz milhares de famílias arrancadas de de seus lares, sítios e roças por projetos desenvolvimentistas que ludibriam o povo com as falsas promessas de um plano que acelera a destruição da Amazônia e faz crescer os bolsões da miséria? Que Páscoa podemos celebrar quando ouvimos dia e noite os gritos desesperados de famílias que pranteiam um irmão, uma irmã, o pai, o esposo, o filho assassinados e nada acontece com os criminosos e pistoleiros de aluguel? Que Páscoa celebramos quando vemos o nosso planeta cada vez mais ameaçado de destruição por esta geração perversa que compromete seriamente a vida de seus filhos e netos?
Irmãs e irmãos! A Páscoa ainda não é a festa de nossa chegada ao Reino Definitivo na glória. A Páscoa é a celebração da "passagem". Passagem não é ponto de chegada, é Caminho. E caminhando recordamos que Jesus anda na nossa frente. Ele é o Caminho. Por isso nunca perdemos a esperança de um mundo diferente, justo e fraterno, do Bem Viver. Ao ressuscitar Jesus, Deus deu o seu Sim irrevogável à Vida. Celebrar a Páscoa significa estar pronto para "trabalhar nas obras de Deus" (v. 28). E "a obra de Deus é que creiais naquele que ele enviou" (v. 29). Crer naquele que o Pai enviou, é comprometer-se com a Vida, é anunciar a Vida onde outros semeiam a morte. Crer é defender a Justiça e o Amor de Deus onde violência e ódio ferem a dignidade e os direitos humanos. Crer é admirar com gratidão o Lar2 que Deus criou para todos nós, cuidar dele e zelar com carinho por ele em vista das gerações que vêm depois de nós.
"Trabalhar nas obras de Deus" não pode ser um empenho superficial. Pressupõe antes uma profunda e entranhada mística, alicerçada no amor radical de Jesus "até o fim"3 (Jo 13,1). É deixar-se traspassar pelo "amor de Deus manifestado em Cristo Jesus, Senhor nosso" (Ro 8,39), é contemplar o seu Sangue derramado, "que é o amor incorruptível"4 e seu Corpo entregue, alimento que nos sustenta e nos dá coragem enquanto peregrinamos neste mundo. Amém.
Aparecida, 9 de maio de 2011
Erwin Kräutler, Bispo do Xingu
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